quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Conto: Escrito a bico de pena


 

Capitania de Minas gerais, Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, 1720 

 

Escuto o estopim na alta madrugada, a janela estilhaça, na rua direita. vou ao chão com o tiro que acertou em cheio o ombro esquerdo, arde, queima, derrubo o tinteiro, pego a folha escrita às pressas, corro, dou uma trombada com a mucama, Ana, no corredor:

            —Senhorzinho José!!!

—Estou bem Ana, já sabe o que vai fazer.

coloca a senhora negra, de ancas largas, o papel “embrulhadin” dentro das tranças nagô.

— Diga a meu pai, o senhor Pascal da Silva Guimarães, que recebi o presente por ele. vós sabe onde vou Ana, lá vou ficar bem. Não temos mais tempo corra! os soldados da coroa, estão a porta.

O Jovem moço, Português, pega o cocho, já disposto nos fundos da casa, em uma penumbra, lá vai ele sangrando.

 

Divisa territorial, Capitania da baía de todos santos

Pai malê, recebe o moço, desfalecido nos braços, ardia em febre, começa a pajelança no terreiro de catimbó, depois de sete dias josé acorda:

— Por Oduduwa, filho meu, como está?

            — Pai malê! Que alívio chegar até aqui. Vim fazer minha feitura.

O negro dá uma gostosa gargalhada.

            — Um sinhozinho branco, deitando pro santo?

            — Sim meu pai, um branco com alma preta.

            — E a revolta?

            — Que me importa, meu velho; não me importo com o quinto da coroa, não me importo com a revolta em Vila Rica, nem tão pouco me importo com o ouro de meu pai.

            — E a liberdade meu filho? Não se faz lutando?

              Não, não acredito mais nisso, quero paz e minha paz é estar aqui, a liberdade é algo que ninguém pode tirar, ela vive aqui dentro, os rebeldes são escravos de sí.

            — Aprendeu mesmo, está usando minhas palavras.

            — Agora pra ser completo, só me falta ela, Helena, ela virá...

 

 A negra Ana, se fundi a escuridão, entra pelos fundos do palacete:

            — Abra a porta, Benta!

Esmurra a velha na porta da casinha dos criados:

            — Irmã!

            — A casa, do senhor Pascal, tá queimando em chamas, eu nem sei dele, “nhozinho” José, levou um tiro, ele fugiu pra Baía:

            — Mãe Oxum cuide dele, durma irmã, descanse:

            — Não! Tenho uma carta pra sinhazinha Helena.

            — Amanhã! deixe pra amanhã, Ana; vou ver se consigo que você fique por aqui e trabalhe na cozinha comigo.

A luz, dos olhos de Helena, voltou quando está viu a negra Ana, na cozinha, já sabia que seu josé tinha notícias, depois da noite em chamas:

            — Mas o que quer josé? Ele bem sabe que casarei em breve.

Correu a bela moça Portuguesa da ilha da Madeira, pelo corredor até o luxuoso quarto, com o papel embrulhado:

            — Ah! José se essa carta não for um plano de fuga, não sei mais, não aceito poemas.

Chora Helena, ao ler, sim era um plano:

— Minha virgem maria, me dê forças.

 

Capitania Real do Rio de Janeiro, Largo Rossio (Atual praça da Independência) - 1747

 

                —Tem algo pra me contar cigana?

            — Sim, tenho algumas coisas, mas pelo andar da carruagem, o senhor que tem algo para me contar, continue sua estória.

              Helena, não foi ao meu encontro, jovem que eu era, cheio da força de Oxóssi, desobedecendo a pai Malê, eu voltei para Vila Rica. Pelas ruelas, espreitando eu assistia a condenação de Filipe dos Santos, vi seu corpo ser arrastado pelas ruas, a noite eles os esquartejaram a cidade estava sendo incendiada e eles os corruptos, comemoravam.

O homem josé, com 45anos, contava todo seu pesar com os olhos parados, enojado pelo governo regente, continuava:

            — Fiquei escondido até a noite, a olhar para o palacete da rua direita, assistia a festa de casamento de Helena, não havia nada a fazer, o que poderia eu oferecer a ela? Decidir não mais incomodar sua vida e deixa-la seguir sua sina. Quando meus olhos encontraram com os olhos dela, parada angustiada, na janela; senti um forte puxão no braço, me jogaram na carroça, me preparava para ser preso pela coroa, quando percebi que era Francisco amigo de meu pai, Pascal:

            — Seu “muleque” seu pai te procura a dias.

O comerciante, deu sinal e a carroaça seguiu, rumo a fora, alguns meses desembarco em Portugal, sigo do Porto para Braga, vida que segue, cigana:

            — Mas hoje, estás aqui e é o que importa, vejo que seu pai, falecerá a pouco, também sei, que seu orixá o espera, agradeço por contar sua sina:

            — E ela?

A pergunta sai do fundo da alma:

            — Vejo Helena; diz a cigana a olhar as linhas da palma da mão, está debruçada como uma princesa, em uma janela, ela...

            A cigana estende a mão, pedindo sua recompensa:

            — Ela te espera, diz a voz da atraente ciganinha, que corre feliz pela praça.

                        José respira:

                        — Luiz?

                        — Sim senhor?

                        — Sigamos viagem para Minas:

                        — Não vai descansar por aqui mesmo senhor? Foi uma longa viagem.

                        — Por favor, Luiz, se já deu água aos cavalos, vamos!

            Quando a carruagem para em frente o palacete da rua direita, a velha negra Ana, não acredita:

            — “nhozinho” josé?

            — Ana, como é bom revê-la

 O vulto da mulher, vestida de luto, abre a porta, eufórica:

                        — José? Não pode ser? Ana, será um fantasma?

                        — Não sinhá, é nosso José.

            O silêncio se fez, nessas entrelinhas, indescritíveis:

            — Podemos seguir o plano? Diz a voz do homem josé, mas parecendo o jovem de outrora.

Helena abre um sorriso e recompõe a pose em segundos:

            — Meu senhor, tantas convenções a serem resolvidas; me aguardem no lugar esperado pelo plano de quase trinta anos atrás, dessa vez a virgem pode descer e me proibir de ir, mas eu irei.

Os curiosos, da rua, já fofocavam, duas beatas passaram cochichando:

            — Já recebendo visitas, que mulher esquisita, ela não vai a igreja.

 

Divisa territorial, Capitania da baía de todos santos

 

            — Pai malê, ela não virá!

            — Acalma-se filho, o que foi combinado? Ela não disse que viria? Pois espere; mais um pouco pra quem já esperou alguns anos.

            — Não sei não, ela tem tudo na vida.

            — “cê” tem certeza disso, filho? E “cê” tinha tudo?

            A carruagem chega, na porteira do ilê.

            A gorda velha negra Ana, desce, acompanhada pela madura mulher, Helena:

            — Meu josé, meu amor, vamos viver nossa liberdade:

            — Entre minha, filha, meu “cazuá” é seu. Diz o ancião

 A negra Ana, cantava e festejava:

            — Liberdade, liberdade ainda que tardia.

             José entedia e agradecia, sim, me sinto livre, pensava dado de mão como dois adolescentes com sua amada, apesar dos horrores e injustiças que existem, somos livre para escolhermos nos despir do ouro que jorra nas veias dessa terra amaldiçoada por nos mesmo e nos deitar nessa mesma terra, abençoando-a, olhado para o sagrado, respeitando-a e viver a liberdade da vida simples.

 

Capitania Real do Rio de Janeiro, Largo Rossio (Atual praça da Independência) - 1747

 

            — Sarita minha filha, o que pensas?

            — Mama, penso na estória que vou contar essa noite na fogueira.

            — Você já a tem?

            — Sim! É a estória de José e Helena, um amor que busca pela Liberdade. Liberdade Mama! que eles se fortaleçam sob o céu estrelado, será que eles entendem a liberdade como nosso povo?

            — Espero que sim, como disse filha, o amor vai fortalecera-los e com o tempo eles vão aceitando serem livres, sem culpa, sem convenções. Apenas o amor, liberta.

 

Um comentário: